Se o apóstolo Paulo convivia com fadiga, frustração e medo em seu ministério, o quê nos faz pensar que podemos evitá-lo no nosso? A cruz deve ser um elemento essencial na nossa definição de realização pessoal. Medimos o sucesso de acordo com os padrões do mundo, e não para desafiá-los com a forma radicalmente diferente que a Bíblia ensina como caminho para a realização pessoal, profissional e espiritual. Esta pode ser uma razão pela qual a Igreja de hoje tem muita superficialidade.
Escrevo logo após participar de uma semana de ministração a pastores em meu país, o Sri Lanka. Eles atuam na região sul da Ilha de Ceilão, uma região marcada por sangrentas lutas separatistas e por muitas restrições ao exercício da fé cristã. Muitos deles trabalharam dez, 15 anos, antes de ver algumas conversões genuínas ao Evangelho, e a preço alto: foram agredidos, sofreram falsas acusações e ameaças de morte, tiveram templos apedrejados e filhos perseguidos na escola. Há aqueles que, infelizmente, desistem depois de alguns anos enfrentando toda sorte de dificuldades para tornar o nome de Cristo conhecido por seguidores do budismo e do hinduísmo, crenças professadas por mais de 80% dos cingaleses.
Sinto-me por vezes humilhado e envergonhado pela maneira como me queixo dos meus problemas, que são ínfimos em comparação com o daqueles irmãos. Quando faço ministrações no Ocidente, meus sentimentos são muito diferentes. Lá, sou capaz de “usar meus dons” e passo a maior parte do tempo fazendo coisas de que gosto. Tudo é mais fácil e prático! Mas, quando eu volto a ser líder em uma cultura como a do Sri Lanka, a frustração me assalta. A transição entre ser um palestrante diante de plateias cristãs em países da Europa ocidental ou dos Estados Unidos e ser um líder cristão em minha terra é difícil. Por isso mesmo, tenho pensado muito na questão do sofrimento na vida cristã. Como líder, segundo as Escrituras, eu sou servo das pessoas com que convivo. O cumprimento de minha vocação no Reino de Deus tem um caráter distinto, diferente do que significa satisfação perante a sociedade. O próprio Jesus disse: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra” (João 4.34). Então se fizermos a vontade de Deus, estaremos felizes e satisfeitos? Não, não é bem assim. Para Jesus, fazer a vontade do Pai significou enfrentar a cruz. Por que deveria ser diferente para nós?
A cruz deve ser um elemento essencial na nossa definição de realização pessoal. Tenho visto jovens cristãos que voltam ao Sri Lanka depois de estudar no Ocidente. Eles retornam altamente qualificados, mas a nossa nação pobre não pode dar-lhes o reconhecimento que suas habilidades adquiridas lá merecem. Então, eles se veem compelidos a lidar com a frustração ou abandonar de vez o país. Alguns montam suas próprias organizações, de modo a cumprir o que acreditam ser sua visão. Outros tornam-se consultores, dando treinamento e assessoria especializada a quem pode pagar por isso. E há, também, aqueles que pagam o preço de se identificar com o nosso povo e, finalmente, ter um profundo impacto sobre esta nação. Tento mostrar a eles que sua frustração poderia ser o meio para o desenvolvimento de uma mais visão profunda. Cito os exemplos de homens como Calvino e Lutero, que tiveram uma enorme variedade de ocupações e responsabilidades, de modo que só podiam usar os seus dons em meio ao cansaço. No entanto, os frutos de seu trabalho como líderes e escritores ainda abençoam a Igreja.
A teologia de Paulo no Novo Testamento enfatizou a necessidade de suportar pacientemente a frustração que vivemos em um mundo caído, aguardando o resgate da criação. Para o apóstolo, a natureza geme por causa de nós e vive essa frustração, conforme Romanos 8.18-27. Creio que não incluímos devidamente essa frustração em nossa compreensão do mundo. Medimos o sucesso de acordo com os padrões do mundo, e não para desafiá-los com a forma radicalmente diferente que a Bíblia ensina como caminho para a realização pessoal, profissional e espiritual. Uma igreja que tem uma compreensão errada dos dons dos seus membros vai certamente tornar-se doente. Esta pode ser uma razão pela qual a Igreja de hoje tem muita superficialidade.
Contemporaneamente, a ênfase na eficiência e nos resultados mensuráveis torna ainda mais difícil suportar a frustração. Nos últimos séculos, o desenvolvimento industrial e tecnológico no Ocidente fez da eficiência e da produtividade seus valores principais. Com o rápido desenvolvimento econômico, as coisas que eram consideradas luxo no passado tornaram-se não só necessidades, como também direitos, mesmo nas mentes dos cristãos. Num ambiente desses, a ideia cristã de compromisso entra em xeque. Costumamos chamar nossas igrejas e organizações cristãs de “famílias”, mas as famílias são muito ineficientes se comparadas a essas organizações eclesiásticas. Em uma família saudável, tudo para quando um de seus membros tem grandes necessidades. Em contrapartida, nós, em nossas comunidades, muitas vezes não estamos dispostos a estender esse compromisso para a vida cristã do corpo.
Compromisso com pessoas – O modelo bíblico da vida em comunidade é a ordem de Jesus para amarmos uns aos outros como ele nos amou. O princípio da liderança cristã é a do Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas, jamais abandonando-as mesmo quando a situação é perigosa (João 10.11-15). Quando Deus nos chama a servi-lo, ele nos chama também para morrer em favor do povo a que servimos. Nós não descartamos as pessoas quando têm problemas e não podem fazer o seu trabalho corretamente, pois servimos justamente para ajudá-las a sair de seus problemas. Nós não dizemos às pessoas para encontrar outro local de serviço quando expressam contrariedade ou mesmo se revoltam contra nós. O certo é trabalhar com elas, até que as partes conflitantes cheguem a consenso entre concordar ou discordar. Mas, quando as pessoas saem de uma igreja porque não se encaixam no programa proposto ali, isso comunica uma mensagem fatal: a de que nosso compromisso é com o trabalho, e não com as pessoas.
O triste resultado disso é que os crentes não têm a segurança de pertencer a uma comunidade que vai ficar e lutar por eles, não importa o que acontecer. Por isso, tornam-se superficiais, nunca desenvolvendo verdadeiros vínculos e jamais crescendo rumo à maturidade. Passam a deslocar-se de grupo para grupo, na expectativa de achar seu porto seguro. Uma igreja comprometida com programas pode crescer numericamente, mas não vai nutrir suficientemente os cristãos bíblicos que entendem as implicações de pertencer ao Corpo de Cristo. Sim, lidar com pessoas é, muitas vezes, frustrante. Mas nós temos de suportar as decepções advindas desse relacionamento, porque Cristo nos chamou para que nos doemos aos outros.
Tempos atrás, preguei sobre compromisso numa de minhas viagens ao Ocidente. No espaço de poucos dias em que durou aquela jornada, fui procurado por algumas pessoas. Todas relataram casos em que conhecidos, quando não eles mesmos, haviam deixado um grupo ou uma pessoa por causa de problemas. Uma dessas pessoas tinha saído de um casamento que considerava infeliz; outra deixara a igreja à qual pertencia por não concordar mais com suas propostas; um terceiro contou que tivera de abandonar o diante de dificuldades incontornáveis com os colegas. Cada uma dessas pessoas descrevia sua saída como uma versão misericordiosa do sofrimento. No entanto, não pude deixar de me perguntar se, em cada um daqueles casos, a única coisa que aquelas pessoas deveriam ter feito, como cristãs, não teria sido para ficar e sofrer.
Muita gente se solidariza comigo e com meu ministério pelo fato de eu servir em um país assolado pela guerra e hostil ao evangelismo. Na verdade, temos sofrido muito por isso, e somos afetados diretamente pela atual situação de Sri Lanka. Há alguns meses, um de nossos funcionários foi brutalmente agredido e morto. Tenho enfrentado diversas lutas durante meu trabalho na Mocidade para Cristo cingalesa, mas posso dizer que essa entidade, ao lado de Jesus e de minha família, tem sido a maior fonte de alegria para mim. Pela graça de Deus, conto com um grande grupo de pessoas a quem recorro pedindo oração quando tenho necessidades. Uma delas, sem dúvida, é superar o cansaço. Quando escrevo sobre isso, muitos desses amigos de caminhada respondem dizendo que estão orando para que Deus possa me fortalecer e orientar na minha luta diária.
Contudo, existem diferenças na forma como os amigos do Oriente e alguns no Ocidente respondem. Tenho a sensação forte de que muitas pessoas no Ocidente pensam que lutar contra o cansaço por excesso de trabalho é prova de desobediência a Deus. Mas vamos ter de suportar o cansaço quando nós, como Paulo, formos servos do povo de Deus. O Novo Testamento é claro ao dizer que aqueles que trabalham para Cristo sofrerão por causa de seu trabalho. O Senhor nos chama em meio ao cansaço, ao estresse e à tensão. Paulo falou muitas vezes sobre as lutas físicas e mentais que o levaram a sofrer em seu ministério. A lista é longa: abalos emocionais (Gálatas 4.19); raiva (II Coríntios 11.29); noites insones e fome (II Coríntios 6.5); angústia e perplexidade (II Coríntios 4.8); fadiga (Colossenses 1.29). Em declarações que soariam radicalmente contra a cultura contemporânea, o apóstolo disse coisas como “ainda que o nosso ‘eu’ exterior se corrompa, o nosso ‘eu’ interior se renova de dia a dia” (II Coríntios 4.16). E o que dizer do texto que, no mesmo livro, fala rm ser entregue à morte por causa de Cristo? “De modo que a vida de Jesus também se manifesta em nossa carne mortal. Então, a morte é não é apenas a obra em nós, mas a vida em vós” (II Coríntios 4.11-12).
A glória da dor – Temo que muitos cristãos leiam tais textos apenas com interesse acadêmico, não pensando seriamente em como esses princípios devem ser aplicados em suas vidas. O Ocidente, depois de ter lutado contra a tirania do tempo, tem muito a ensinar ao Oriente sobre a necessidade de descanso. Ao mesmo tempo, o Oriente pode ensinar ao outro lado acerca das lutas físicas que vêm de compromisso com as pessoas. Ocorre que o sofrimento é um passo inevitável no caminho para a realização. Desde que a cruz é um aspecto fundamental do discipulado, a Igreja deve treinar líderes cristãos a esperar a dor e o sofrimento. Quando uma perspectiva assim entra nas nossas mentes, a dor, por mais forte que seja, não vai tocar nossa alegria e contentamento em Cristo. Tanto, que em nada menos que dezoito diferentes passagens do Novo Testamento, sofrimento e alegria aparecem juntos – e, na ótica paulina, o sofrimento é muitas vezes motivo de alegria, como expressou em Romanos 5.3-5.
Em um mundo onde a saúde, a aparência física, o acúmulo de bens e as facilidades da vida moderna ganham proeminência quase idólatra, Deus quer chamar cristãos para demonstrar a glória do Evangelho suportando a dor e o sofrimento. O curioso é que as pessoas que estão insatisfeitas após buscar incessantemente essas coisas, que sozinhas não satisfazem os anseios da alma, surpreendem-se ao ver gente alegre e contente, mesmo em meio a dificuldades de todo tipo. Talvez esta seja uma nova – e eficiente – forma de demonstrar a glória do Deus diante dessa cultura hedonista.
A Bíblia e a história mostram que o sofrimento é um ingrediente essencial para alcançar as pessoas não alcançadas. E o Ocidente está rapidamente se tornando uma região de não alcançados. Será que a perda de uma teologia do sofrimento pode levar a Igreja ocidental a tornar-se ineficaz na tarefa de evangelização? Sua congênere oriental, no entanto, floresce no anúncio das boas novas, mesmo em contextos de intensa perseguição à fé. É por isso que a troca de influências entre os dois lados da cristandade tem sido tão significativa, e disso posso falar por experiência própria. Cristãos, tanto no Oriente como no Ocidente precisam ter uma teologia do sofrimento se quiserem ser saudáveis e frutíferos nas mãos do Senhor.
Ajith Fernando é diretor nacional de Mocidade para Cristo em Sri Lanka e líder de uma igreja cristã em Colombo, a capital do país. Autor do livro Convite à alegria e dor, escreveu este artigo como parte da Conversa Global , evento preparatório do III Congresso Mundial de Evangelização, que acontece em outubro na Cidade do Cabo (África do Sul)
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